O Estabelecido, o Opositor e os Caminhos da Mão Esquerda e Direita
Como a civilização levou a humanidade à sua forma atual? Por meio de incontáveis desenvolvimentos e desvelos, a humanidade nunca deixou de ser, de fato, humanidade. Ao passo em que instituição da ciência foi se atualizando, também se atualizaram as doenças. Maiores as armas, maiores as ameaças. Maiores facilidades, maiores problemas. Seguindo a simbólica morte de Deus, surgiram outros intentos, outros símbolos, outros seres, clamando a posição excelsa do inquestionável determinante. Já há muito tempo, no ideário coletivo, YHVH tornou-se Deus. Deus tornou-se um cacoete. Deus deu lugar ao costume coletivo. O costume coletivo revelou-se como o ouro. O ouro revelou-se como uma forma genérica de troca.
É interessante observar que este desvelo nunca melhora, se mantém miserável em sua particular maneira desde que algumas civilizações inspiraram-se na ilusão do Uno. O Deus Uno torna-se então o cão de guarda da minha tribo. Da minha região, do meu deserto. Uma deidade pagã que, em comparação com outras, fornece uma inspiração diferente: o ímpeto pelo artificial. Por negar o que vem do visível, em favor da bênção daquele que é etéreo. Talvez estejamos falando do primeiro monopólio a prosperar na História. Esta deidade, versátil, mutável e adaptável, foi manufaturada para um propósito macroscópico e coletivo, no que diz respeito à jornada da humanidade. Este propósito é retirar o homem de sua caverna para colocá-lo em um curral. A despertar o homem de sua condição primeva e, em detrimento desta mesma condição, torná-lo um animal domesticado. A limitá-lo massivamente com poucas exceções. O Deus da civilização, do trabalho, do dinheiro, da condenação, do comum, do convencional. Em sua última forma, este Deus revela-se como a própria sociedade humana. Pensemos...talvez forçar um único Deus seja uma jogada muito estúpida. Talvez seja melhor aceitar a nossa realidade múltipla, complexa e variada, desenvolvida por entre os ambientes geográficos, através dos tempos, das experiências, dos complexos e sombras nucleares. Talvez seja mais humano descentralizar tudo. É de fato o mais humano possível. O mais saudável, salutar e honesto.
Entretanto, de tempo em tempo somos compelidos a engarrafar vários aspectos de nós em favor do coletivo. O Deus do coletivo, ou o Coletivo-Deus, nos impõe esta condição. O Deus citado pelo vulgo. Por aqueles cuja imaginação jamais ultrapassou o azul dos céus. Não me entenda mal. Apesar das aparências, este não é um choro ateísta. Muito pelo contrário, este é um apelo pelo invisível. Repare: "Com o suor do teu rosto comerás o teu pão, até que voltes ao solo, pois da terra foste formado; porque tu és pó e ao pó da terra retornarás!" Desconheço citação mais eloquente a revelar os reais intentos deste Monolito. Ora, nem ao menos nos sobra espaço para a imaginação...simplesmente não há outra forma! É preciso trabalhar. É preciso atingir grandes expectativas em troca das migalhas. "Comerás o teu pão." Algo ao mesmo tempo tão próximo e tão distante do pão...a carne! Carne dos seres que povoam a Terra, acessível pela habilidade da caça. Não, não. A triagem da Terra é muito perigosa, os homens provavelmente se tornariam muito fortes para que uma civilização fosse possível. Para que tal seja possível, é preciso trigo, terra, arado, populaças e massas de doentes, velhos e crianças. A agricultura, a superpopulação. Pois o homem que vive como o rebanho torna-se o rebanho. Não mais o arco e a flecha, a lança e a espada, o sangue e o calor do fogo a estalar nas negras cavernas. "Como herbívoros viverão, a predadores servirão!" Assim, reinará a paz entre os homens. Assim como reina hoje, reinou a paz entre os rebanhos de 1939 a 1945. Assim, uma das gerações mais virtuosas da história humana foi completamente esfacelada do planeta, visto que neste mundo que criamos, os mais fortes e capazes, de fato, num princípio estabelecido pela natureza deste mundo, jazem na bucha de canhão. Portanto multipliquemos, tornemo-nos humildes, ofereçamos nossas cervicais aos abatedores! Nossas crianças a aliciadores! Pois que a virtude superior nesta moral nefasta é entregar a si mesmo à tortura em nome de um chefe indiferente. Toda esta moral se reflete em praticamente tudo o que a cultura gera, inclusive em várias (talvez a maior parte) das vertentes do caminho da Mão Esquerda, lamentavelmente. Troca-se seis por meia dúzia, pois a moralidade antinomial existe por conta do próprio conflito que ela mesma gera, em si mesma e com o externo.
Deve-se questionar, portanto: qual o objetivo por trás de tamanha penalidade? O objetivo final é necessariamente um mistério ou fantasia fruto de diversos malabarismos dialéticos. O carma comum, digamos, a lei de causa e efeito da matéria, produz artifícios simples. Se eu coloco o dedo na tomada, levo um choque, sou punido e não o farei mais em sã consciência. Se eu tento chutar um cachorro inofensivo, escorrego e caio de cara no chão, bem, a lição está bem clara. A mentalidade humana funciona desta forma, a carne em que estamos inseridos, por assim dizer, entende a justiça desta simples maneira. Se eu sou punido por algo e não me lembro o porquê da punição? É extremamente improvável que o erro original seja ao menos assimilado. Se eu matei alguém com três anos de idade e recebo uma reprimenda aos sessenta e cinco anos, será impossível refletir sobre a minha infração. Essa é a lógica da justiça que infesta os caminhos da mão direita e qualquer religiosidade monoteísta. Alguns justificam essa justiça com a teoria das reencarnações. Bem, em minha opinião, isto só agrava o problema. Mas isto é material para outro texto.
Falemos agora sobre o opositor. Seria este opositor o famigerado Adversário, um ente digno de admiração, repulsa ou objeto de devoção? Ou seria este um simples momentuum de propulsão contrária, ou talvez o natural choque de retorno causado por estas prestidigitações infames? Talvez o Diabo, talvez os Demônios sejam nada mais que a própria reação energética contra estes constructos, feitos em nome de uma noção monolítica da realidade. Agora, iremos mais adiante. Os excessos, as devoções satânicas, as blasfêmias e pactos inerentes à maior parte das correntes da mão esquerda representam a projeção de uma potencialidade não alcançada pelas vias coletivas socialmente aceitas. Portanto, há o ímpeto de buscar o espaço ocupado pelas igrejas e cultos supostamente luminosos, seja por meio de missas negras ou orações de Pai Nosso ao contrário, imolações e sacrifícios, estes por sua vez, não oriundas de uma formação pagã ancestral, mas de uma visão inversa e bastante consciente das tradições hebraicas monolíticas.
Em suma, creio que decidir entre a escolha de um caminho X ou Y recai necessariamente numa aceitação do “pacote completo”. Ao defrontar-se com o menor sinal de questionamento, percebe-se que boa parte dos aparelhos de culto e práticas espirituais, sem contar com o arcabouço filosófico-simbólico destas vertentes, acabam desbocando em uma dissolução no coletivo. Aquilo que em princípio, o caminho da mão esquerda, ou ao menos a corrente Luciferiana visa evitar. Teoricamente. O mais cômico disso tudo é que, em um mesmo livro vê-se na introdução em letras garrafais: “O NOSSO OBJETIVO É A AUTODEIFICAÇÃO”. No capítulo seguinte, em letras igualmente garrafais: “ANTES DE PROSSEGUIR, FAÇA O PACTO DE SANGUE COM ENTIDADE X, CONSTRUA UM ALTAR EXALTANDO SUA FORÇA E COMPAREÇA NA NOSSA IGREJA!” Estou presenciando um esquema de fraude de alguma empresa falsa do Paquistão ou meus olhos estão brincando comigo? As próprias correntes das escolas opositoras caem no mesmo erro. Cada instância externa e coletiva visa assimilar o indivíduo e isso irá irrevogavelmente subjugá-lo. Minha ideia é, particularmente, individualizar, isolar e tribalizar. Toda pulsão, toda instância, toda função e complexo devem ser estudados, mas a exaltação de um ou assimilação de outro podem criar um contexto psíquico pouco promissor para qualquer tipo de prática real. Se intentamos nos tornarmos Deuses, a lógica requer que enfrentemos o coletivo como objeto de atrito e que construamos, ou melhor, forjemos em fogo os elementos que formam um indivíduo integral. Para tanto, há o vasto material das operações alquímicas a nosso favor, escondidos por entre tomos vagos e viagens oníricas indecifráveis pelo pensamento consciente. Porém, para que o desvelo do homem seja mais ou menos satisfatório, é necessário sair dos meios da sociedade e abraçar a expressão mais autêntica de si mesmo. Nada disso é possível por meio de cultos ou seitas.